O fim dos tempos não é o fim do mundo


Por Hiran de Melo

 

O fim dos tempos não é o fim do mundo.

É o fim do meu tempo, do seu tempo.

É o fim do tempo individual de cada um de nós.

Mas não é o fim dos tempos de todos nós, ao mesmo tempo.

 

O fim dos tempos, ao contrário do que narra o Apocalipse, chega em silêncio — devagarinho, sem desespero, e também sem carinho. Chega na solidão.

 Chega com a casa vazia — e você nela, habitando. Chega quando nenhum dos seus tem tempo para ouvir você, ouvir a mim. Chega quando nossa presença é apenas figurativa.

 

Não tenhas medo dos cavaleiros do Apocalipse — eles não virão mais. Já estão aqui, e quase não são notados.

 Irrelevantes. Apenas sombras para amedrontar crentes em busca da salvação de suas ilusões.

 O fim dos tempos, para mim, chegou.

Chegou quando, em noite de São João, prefiro ficar em casa.

A rua e os fogos de artifício já não me encantam.

A garrafa de vinho tinto — português — continua fechada.

Antes, eu apreciava degustar gota por gota. Hoje, são indiferentes os daninhos, as coisas e tais.

 O fim dos tempos chegou para mim quando o encanto de um balão subindo ao céu já não me fascina.

E o destino dele — ao chão — também já não me interessa.

Tem bastante chuva para apagar um possível princípio de incêndio, pelo menos aqui, na Serra do Borborema.

 Chove muito. E, quando a chuva para, o céu permanece nublado.

Sei que o fim dos tempos — dos meus tempos — ainda não chegou totalmente.

Porque ainda me emociono ao ouvir a música que toca no meu coração:

 Olha pro céu, meu amor

Vê como ele está lindo
Olha pra aquele balão multicor
Como no céu vai sumindo

Foi numa noite igual a esta
Que tu me deste o coração
O céu estava assim, em festa
Porque era noite de São João...

 

A dissolução silenciosa dos vínculos

 

O “fim dos tempos”, como descrito no texto, não é um evento cataclísmico ou escatológico coletivo. Trata-se, antes, de uma desagregação subjetiva e cotidiana, sutil e silenciosa — uma espécie de erosão interna dos laços, da presença, da escuta, do encantamento com a vida.

 

Nesse sentido, o texto expõe um sujeito que não mais se reconhece no mundo à sua volta. A festa junina, outrora celebrada com música, vinho, fogos e balões, agora aparece como um ritual desprovido de sentido. O tempo, outrora vivido em comunhão, é agora individualizado, fragmentado — e solitário.

 

Essa fragmentação reflete uma realidade contemporânea na qual as estruturas de pertencimento se esgarçam, e o “eu” se vê, paradoxalmente, mais “conectado” tecnologicamente e mais desconectado afetivamente. A casa cheia de ausências e a presença apenas “figurativa” denunciam uma sociedade onde os laços afetivos foram substituídos por relações utilitárias e descartáveis.

 

O fim como metáfora da perda do sentido

 

O "fim dos tempos" é descrito como desencanto, como o momento em que as coisas deixam de tocar a alma. O vinho que antes era saboreado gota a gota e agora permanece fechado simboliza a perda do prazer nas pequenas coisas, um tipo de morte em vida. Não é o mundo que acabou — é o sentido de mundo que se perdeu.

 

Na perspectiva hermenêutica, este texto oferece uma leitura da existência onde o tempo deixou de ser vivência e se tornou sobrevivência. A festividade perde seu brilho porque a alma que a celebrava já não encontra ali seu espelho. A linguagem se torna então uma tentativa de salvar o que ainda pode ser salvo: um traço de emoção, uma lembrança, um verso que resiste ao colapso interior.

 

A chuva na Borborema e o eco da sanfona

 

Eis que surge Luiz Gonzaga, não em nome, mas em espírito. A Serra da Borborema, a noite de São João, o balão subindo, os fogos, o vinho, a música — tudo remete a um universo simbólico nordestino, onde a memória afetiva é parte do que sustenta a identidade.

 

A chuva que cai na Borborema não é apenas meteorológica. É metáfora de um tempo passado que regava o chão do afeto, que apagava os incêndios da desesperança. O céu nublado é o retrato interior de quem já não vê estrelas no horizonte.

 

No entanto, há resistência. O trecho final — a citação de um clássico da música junina — reacende a centelha. A lembrança da canção, e a emoção que ela ainda provoca, são a prova de que nem tudo se perdeu. Há ainda um espaço para o sagrado cotidiano, para o afeto, para o amor — mesmo que seja só na lembrança.

 

Essa canção, tão simples e tão profunda, serve como âncora simbólica contra o naufrágio total. Ela é a voz do passado que insiste em dizer: ainda há beleza. Ainda há festa, mesmo que só na memória. E se há memória, há tempo — ainda que pouco — para reencantar-se.

 

Por enquanto

 

O texto é, portanto, um lamento sereno, um canto de saudade e reflexão sobre a finitude pessoal, mais do que sobre um fim coletivo. É a constatação de que o “fim dos tempos” se dá quando deixamos de nos emocionar com aquilo que um dia nos tocou. Mas também é a celebração do que resiste: a emoção que uma música pode despertar, mesmo no coração mais cansado.

 

É um texto sobre envelhecer, sim, mas também sobre o desafio de manter viva a capacidade de se comover — mesmo quando o mundo parece já ter passado. E nisso, talvez, more a redenção.

 

Mestre Melquisedec

 

Assista quando ainda tiver tempo:

https://youtu.be/Q9n7oz0-yW0?si=P_DqIlP4kGqs63M0

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