Entre a docência e a exaustão: o professor universitário como agente e vítima do sistema

 

Por Hiran de Melo

 

No palco sombrio da universidade moderna, onde os corredores ecoam mais teclas que passos, o professor ergue-se — não como estátua de bronze, mas como corpo cansado. Dizem que ele detém o saber, que é farol e timoneiro. Mas poucos enxergam as rachaduras em sua estrutura, o tremor nas mãos que corrigem provas, a dor dos olhos que já não suportam tantas telas.

 

Ele é, dizem, autoridade. Mas a autoridade hoje tem um crachá, um prazo, um formulário a preencher. Aquilo que era vocação virou planilha. Aquilo que era encontro virou exigência. Aquilo que era sonho virou cansaço.

 

Vestido com a capa da excelência, o docente se arrasta entre bancas e relatórios, mal tendo tempo de lembrar por que começou. É cobrado por papers, por impacto, por metas. O "bom professor" — como o "bom aluno" — é o que não pausa, não chora, não falha. Ele é produto e produtor, gestor de si mesmo. Um corpo que performa. Uma mente que finge não gritar.

 

Na engrenagem do mundo neoliberal, ele também foi capturado. O que se esperava que fosse farol, tornou-se lâmpada fluorescente — fria, incessante, desgastada. Não é que ele deseje ser parte da norma. É que, muitas vezes, não há escapatória. A docência virou sobrevivência, e o gesto de ensinar, um ato de resistência silenciosa.

 

E, ainda assim, pedem que ele acolha. Que ouça o estudante em colapso, que perceba o choro disfarçado na terceira fila, que tenha tempo e palavra certa para quem está à beira do abismo. Mas quem ouve o professor? Quem percebe seu silêncio cada vez mais longo? Quem enxerga o homem ou a mulher por trás do currículo Lattes?

 

Ele também toma remédios. Também chora escondido. Também pensa em desistir. A universidade pede que ele ensine com o coração — mas exige que ele viva como máquina.

 

E mesmo quando endurece, quando se torna ríspido ou indiferente, não é sempre crueldade: às vezes é escudo. Não é sempre arrogância: é defesa. Porque a sala de aula virou trincheira, e ali dentro se batalha com mais do que conceitos — batalha-se com a própria vontade de continuar.

 

O velho filósofo da dor e do eterno retorno, Nietzsche, nos ensinou que é preciso ter caos dentro de si para parir uma estrela dançante. E o professor, entre a pilha de trabalhos e os relatórios infinitos, ainda tenta dançar. Ainda sonha, mesmo tropeçando.

 

Há quem pense que ele é parte do problema. Mas ele também é sintoma. Também adoeceu. Também foi empurrado para a lógica da produção, da mensuração, da meritocracia. Seu sofrimento, assim como o dos estudantes, foi rotulado de fraqueza, varrido para debaixo do tapete acadêmico. Não está nos rankings, não está nos editais, não entra nos currículos.

 

E, no entanto, brotam resistências. Professores que ousam dizer “não”. Que abrem o tempo para uma escuta. Que pausam a aula para acolher. Que abandonam o púlpito para sentar em roda. Que entendem que ensinar é mais que informar — é tocar. É cuidar. É ser humano junto.

 

Esses não negam sua posição. Mas a ressignificam. Não querem mais formar corpos adaptáveis, mas consciências inquietas. Não querem mais ensinar a se encaixar — mas a se transformar.

 

A universidade é campo de dominação, sim — mas também de criação. E o professor, ainda que ferido, pode ser artífice de novos começos. Ele não é máquina quebrada. É humano em combustão. E a fagulha ainda queima.

 

Entre o esgotamento e o gesto de cuidado, entre o acúmulo de tarefas e o silêncio que pede presença, está o professor contemporâneo. Um ser ambivalente, sim, mas cheio de possibilidades. Vê-lo em sua complexidade é o primeiro passo para restaurar o que a lógica do capital tentou destruir: a potência de educar com o corpo inteiro.

 

Porque não há educação verdadeira onde os que ensinam estão morrendo por dentro. Cuidar do professor é, também, cuidar da esperança. É sustentar a chama que ainda resiste nas trincheiras da universidade — mesmo quando tudo pede desistência.

 

E enquanto houver quem sonhe entre um turno e outro, quem resista à exaustão com um gesto de ternura, ainda será possível reinventar o ofício de ensinar. Não com fórmulas, mas com presença. Com coragem. Com afeto.

 

Recomendo a leitura do artigo:

Universidade, caminho para a depressão?

https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/universidade-caminho-para-a-depressao/


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