Evangelho de Fariseus
1ª Parte
Fazemos campanhas pra nós mesmos
Eventos pra nós mesmos
Estocamos o maná para nós
Oramos por nós e pelos nossos
O Reino virou negócio
O dízimo importa mais do que os corações
Enquanto Ele tá querendo
Quem nós nem pensamos ou nos preocupamos
Oramos errado há séculos
Dias, horas e anos
Nos afastamos
2ª Parte
Há um evangelho de fariseus
Cada um escolhe os seus
E se inflamam na bolha do sistema
3ª Parte
"Ah, enquanto isso, no Marajó
O João desapareceu
Esperando os ceifeiros da grande seara
A Amazônia queima
Pa-ra-ra
Uma criança morre
Pa-ra-ra
Os animais se vão
Pa-ra-ra, ah-ah-ah, ah-ah
Superaquecidos pelo ego dos irmãos"
Um evangelho de fariseus
Estamos apodrecendo o corpo de Cristo
O sangue não tá circulando
O sangue tá coagulando
Estamos no ápice da nova era
E a falsa noiva se rebela
Contra o Noivo que espera ver um caráter cristão
Há um evangelho de fariseus
Cada um escolhe os seus
E se inflamam na bolha do sistema
Ah, enquanto isso, no Marajó
O João desapareceu
Esperando os ceifeiros da grande seara
Pa-ra-ra
Um evangelho de fariseus
Pa-ra-ra
Um evangelho de fariseus
Pa-ra-ra
Um evangelho de fariseus
Pa-ra-ra
Leitura
do poema: Evangelho de Fariseus, de Aymeê
Por
Hiran de Melo
Uma
compositora e cantora paraense evangélica, com aparência de adolescente, mas
cuja profundidade poética crítica revela a real idade da jovem Aymeê, 28 anos.
Ela produz uma música que tem o potencial de reformar as práticas de muitas
denominações evangélicas. Sua obra é como um redemoinho interior, que pode se
tornar tão importante quanto Lutero foi para a evolução do cristianismo. Para
facilitar a análise, dividimos o poema em cinco partes.
1ª Parte
Fazemos campanhas pra nós mesmos
Eventos pra nós mesmos
Estocamos o maná para nós...
Esta
primeira estrofe revela, de forma contundente, a crítica central da composição:
o egocentrismo que permeia, em muitos casos, a prática religiosa dos tempos
atuais. A adoração, antes voltada ao sagrado e ao bem comum, converte-se em
ritual voltado para os interesses do próprio grupo. Campanhas, eventos e até
mesmo o "maná" — símbolo do cuidado providente — são ressignificadas
como bens de uso privado, quase como se fossem posses materiais.
A
oração, outrora expressão de comunhão e serviço, transforma-se em instrumento
de autopreservação. Assim, a espiritualidade torna-se vazia de essência,
voltada mais à forma do que ao conteúdo. O "Reino", nesse cenário, é
interpretado como empreendimento; e o dízimo, como expressão de poder
institucional, não mais de entrega e confiança. Há aqui um eco daquilo que
Pierre Bourdieu observava: quando os campos religiosos se autonomizam e
disputam capitais simbólicos, podem acabar cultivando mais prestígio do que fé.
2ª Parte
"Há um evangelho de fariseus
Cada um escolhe os seus
E se inflamam na bolha do sistema"
Neste
trecho, a poetisa faz referência à figura dos fariseus — não como ataque
pessoal, mas como símbolo da religiosidade rígida e superficial — para
evidenciar o sectarismo e a fragmentação que marcam certas posturas religiosas.
O "evangelho" aqui denunciado já não é mais boa nova universal, mas
uma narrativa moldada aos gostos e conveniências de quem a professa.
Escolhe-se
a quem amar, a quem servir, e com quem se parecer. O mandamento maior, o do
amor incondicional, é substituído por critérios de afinidade e exclusão.
Forma-se, assim, uma bolha ideológica onde o outro — aquele que pensa, crê ou
vive de maneira diferente — é ignorado ou rechaçado. Nessa bolha, as verdades
se solidificam como dogmas, e não como compromissos éticos. Como lembraria
Immanuel Kant, a fé sem razão prática — ou seja, sem respeito pela dignidade de
todo ser humano — corre o risco de tornar-se mera superstição moral.
3ª Parte
"Ah, enquanto isso, no Marajó
O João desapareceu...
A Amazônia queima...
Uma criança morre...
Superaquecidos pelo ego dos irmãos"
A
canção, neste momento, realiza um importante deslocamento: do espiritual ao
social, e deste ao ecológico. Enquanto o olhar religioso permanece voltado para
si, o “João” — figura do abandonado, do invisível — desaparece. Marajó e a
Amazônia surgem como territórios simbólicos do esquecimento, espaços reais onde
a ausência da compaixão e da justiça tem consequências trágicas.
A
natureza sofre, as crianças morrem, e a criação é sacrificada pelo egoísmo dos
que se autoproclamam irmãos. A imagem do "superaquecimento" torna-se
tanto literal quanto metafórica — é o planeta que queima, mas é também a
caridade que esfria.
Há,
aqui, uma lembrança implícita das críticas feitas por Friedrich Nietzsche à
moral religiosa que, ao afastar-se da vida concreta e dos corpos reais,
refugia-se em dogmas que alienam. Aymeê nos convida a despertar desse torpor, a
resgatar a vida vivida e não apenas a fé pregada.
4ª Parte
"Um evangelho de fariseus
Estamos apodrecendo o corpo de Cristo
O sangue não tá circulando..."
A
metáfora do corpo, inspirada na tradição paulina, é retomada com força nesta
estrofe. O corpo — que representa a comunidade de fé — encontra-se enfermo. O
sangue, símbolo da vida e da salvação, deixou de circular; tornou-se espesso,
inerte. Há uma paralisia espiritual que impede o movimento, a renovação e o
crescimento.
A
“nova era”, que deveria anunciar um tempo de transformação, revela-se um tempo
de vaidade e superficialidade. A “falsa noiva”, símbolo da comunidade desviada
de sua vocação, rebela-se contra o “Noivo” — figura do Cristo — que aguarda,
com paciência e esperança, a manifestação de frutos verdadeiros: humildade,
serviço e caráter íntegro.
Essa
crítica, no fundo, aponta para o que Gilles Deleuze via como a captura da
diferença pela repetição de padrões. O evangelho, reduzido a um modelo fechado,
perde sua potência criadora e vira reprodução do mesmo. A noiva rebelada, nesse
caso, não é revolucionária — é apenas reflexo do sistema que a engessou.
5ª Parte
"Há um evangelho de fariseus...
Ah, enquanto isso, no Marajó
O João desapareceu..."
A
repetição, nesse momento final, não é mero recurso estético; é um lamento, um
clamor. Quase como uma súplica cantada, revela a dor de ver vidas esquecidas,
enquanto se repetem práticas religiosas estéreis. O “João” permanece invisível,
aguardando ceifeiros que não vêm, pois estes estão preocupados com seus
próprios afazeres e interesses.
A
“grande seara” — o mundo sedento por sentido e cuidado — permanece
desassistida. Esta parte da canção evidencia, com clareza e emoção, a urgência
de conversão do olhar e de retomada do propósito.
Por enquanto
A
canção Evangelho de Fariseus
é, ao mesmo tempo, denúncia e convite. Denúncia de uma religiosidade
autocentrada, excludente e superficial; e convite à coerência entre fé e
prática, palavra e ação. Com ternura e firmeza, Aymeê nos recorda que a verdadeira
espiritualidade se manifesta no cuidado, na justiça e na compaixão.
Ainda
que traga ecos de críticas filosóficas que apontam para o esvaziamento ético da
religião, sua mensagem não é de abandono, mas de retorno: à essência, à
fraternidade e à transformação interior. Que essa reflexão nos inspire a rever,
com humildade e coragem, as estruturas que habitamos e os caminhos que
trilhamos — tanto no templo quanto na vida.
Assista:
https://www.letras.mus.br/aymee/evangelho-de-fariseus-2/
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