Criança Inocente
Por
Hiran de
Melo
Quando escutei e refleti sobre a
expressão “criança inocente”, compreendi por que ainda sou criança, já que
continuo inocente. Ou, em uma expressão rude, sou uma criança que envelheceu
sem se emendar: “Esse menino não se enxerga, não tem jeito”.
Apanhei muito sem saber por que
apanhava tanto — e, ainda, por que apanhava para o meu próprio bem.
O “apanhar para aprender” era a
expressão máxima da pedagogia doméstica na minha infância. Era seguida de outro
adágio, ainda hoje tão nebuloso quanto o primeiro: “apanhar em casa para não
apanhar na rua”. Além de um terceiro, anunciado como consolo ou como perdão ao
agressor: “pancada de amor não dói, educa”.
Recentemente, fui informado de que sou
mal-educado. Fiquei com raiva — não porque eu não saiba que sou, de fato,
mal-educado (as inumeráveis pisas que levei não me serviram para nada, não me
emendaram), mas porque fui lembrado de que apanhei de graça. E não, pela Graça.
“E tinha graça sem diferente?” Pois bem-educado eu não me tornei e, pior,
continuo inocente. E, portanto, não sou digno de estar à mesa com os
bem-educados.
Inocente da razão por que apanho tanto.
Inocente porque, dessas pisas, nada aprendo. Inocente porque continuo criança.
Criança carente de um abraço. Criança inocente por acreditar que posso ensinar
algo diferente — e libertador — a um adulto convicto de que é um legítimo
representante, e fruto, do mundo da razão e do progresso.
Até que ouvi algo, de fato, educador: o
inocente deve calar para aprender com o silêncio — e, no silêncio, aprender a
se comportar em um mundo habitado por seres pertencentes a diferentes grupos,
ou bolhas, em permanentes procissões.
De cada grupo, se originam cânticos,
gritos de fés divergentes. Cada profissão de fé, uma verdade. Cada conversão a
uma fé, uma ruptura no tecido social. Em cada grupo, uma ética; em cada um, a
verdade se apresenta absoluta. E, por isso mesmo, relativa.
Como ser bem-educado para viver neste
mundo em permanente conflito de éticas e verdades?
O cantor Paulinho da Viola uma vez me respondeu assim:
Vista
assim do alto
Mais parece um céu no chão
Sei lá
Em Mangueira a poesia feito um mar se alastrou
E a beleza do lugar, pra se entender
Tem que se achar
Que a vida não é só isso que se vê
É um pouco mais
Que os olhos não conseguem perceber
E as mãos não ousam tocar
E os pés recusam pisar
Sei lá, não sei
Sei lá, não sei
Não sei se toda beleza de que lhes falo
Sai tão somente do meu coração.
A inocência como resistência: um ensaio sobre o não-aprender
Há textos que não pedem ser explicados
— pedem ser escutados. “Criança Inocente” é um desses. Sua potência nasce do
descompasso entre aquilo que se esperava que o sujeito aprendesse — e aquilo
que, de fato, ele se tornou. O texto é o testemunho de alguém que apanhou para
aprender, mas não aprendeu. Não como esperavam. Não no sentido convencional,
nem moralizante, nem disciplinador. O que aprendeu foi outra coisa: o medo, a
ausência, a solidão.
Essa é uma filosofia feita do corpo —
um corpo que apanhou — e da alma — uma alma que ainda se emociona. Essa
dicotomia revela um embate interior: o da formação pela dor contra a
resistência pela sensibilidade.
A pedagogia do medo e o fracasso da razão disciplinadora
O texto reflete uma crítica visceral ao
modelo tradicional de educação, doméstica e social, que ainda insiste em
confundir violência com correção. “Pancada de amor não dói” é a racionalização
que transforma o agressor em tutor, e o sofrimento em lição. Mas a lição não
chega. A criança que apanha não aprende cidadania — aprende silêncio. Aprende a
temer o mundo e a duvidar do próprio valor.
Esse sujeito, agora adulto, carrega o
rótulo de “mal-educado” como uma segunda violência: a constatação de que toda a
dor não serviu sequer ao propósito que lhe foi atribuído. Não virou exemplo,
não virou “gente de bem”. Em vez disso, preservou a inocência — não como
ignorância, mas como não-contaminação.
A inocência como consciência crítica
Ao contrário do que a moral tradicional
afirma, aqui a inocência não é ingenuidade, mas postura ética diante de um
mundo ruidoso e cheio de certezas dogmáticas. A criança que sobrevive em nós é
aquela que ainda se espanta, ainda pergunta, ainda não se acomoda às respostas
prontas.
A crítica se aprofunda quando o texto
sugere que o verdadeiro gesto educativo foi ouvir que o inocente deve calar —
não para se submeter, mas para escutar o mundo. Escutar a pluralidade de
éticas, de verdades, de bolhas, de fés. Cada uma absoluta em si, mas relativa
na convivência com o outro. E aqui se insinua uma filosofia do cuidado: como
coexistir sem negar o outro? Como educar sem violentar? Como pertencer sem
excluir?
Paulinho da Viola como filósofo da sensibilidade
E quando faltam as palavras, vem a
canção. A escolha de Paulinho da Viola não é aleatória: é simbólica. No meio de
um mundo onde a ética virou grito e o saber virou disputa, surge uma poesia que
não afirma, mas suspeita. “Sei lá, não sei” — diz o poeta. Essa dúvida não é
fraqueza; é sabedoria. O texto termina onde a filosofia deve começar: na
humildade do não saber, na abertura sensível ao que escapa ao olhar, à mão, ao
pé.
A poesia de Paulinho nos lembra que há
algo da vida que não se aprende com a dor, nem com a razão, nem com o grito. Só
se aprende com o silêncio, com o olhar elevado, com o coração — talvez ainda
inocente — da criança que sobreviveu.
Conclusão: educar para o não-domínio
“Criança Inocente” é, enfim, um
manifesto suave, mas profundo, contra toda pedagogia que substitui o abraço
pela ameaça, a escuta pela norma, o afeto pela hierarquia. Sua filosofia é
simples: o verdadeiro educado é o que se permite continuar criança — aquele que
não desiste de buscar beleza mesmo em meio à pancada, mesmo quando dizem que já
é tarde demais para aprender algo novo.
E talvez seja justamente por isso que a
beleza de que o texto fala, como na canção, não saia apenas do coração de quem
escreve, mas brote também — silenciosamente — no coração de quem lê.
Mestre
Melquisedec –
Decano da ARLS Fraternidade, Força e União, GOPB/COMAB.
Descrição
da Ilustração: Sob o sol filtrado pelas árvores tropicais, uma criança de pele morena e
cabelos cacheados brinca, vestida com as cores do Brasil. Seus olhos curiosos
refletem a inocência de quem ainda acredita. No brilho dos seus cachos, a
herança mestiça de um povo inteiro. Ali, no gesto leve e livre, pulsa a beleza
da infância e a promessa de um país mais justo e plural.
Assista quando, ainda, tiver tempo:
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