Andar sobre as linhas paralelas do trem
Por Hiran de Melo
Já não me prendo tanto aos
"erros". Se tivesse me apegado a eles, talvez tivesse cometido muitos
mais. E, ainda assim, como é gostoso errar — quando se tem consciência do
desvio!
Um dia, talvez, o querido irmão
professor há de perceber que errar também pode ser doce, desde que não fira o
outro.
Andar certinho, alinhado, como sobre os
trilhos de um trem, pode parecer seguro. Mas, cedo ou tarde, esse caminhar será
atropelado pelo sentimento de não ter ousado seguir outros rumos.
É como o beijo que não se dá, mesmo
quando o desejo pulsa. Reprimir esse impulso é arriscar que, na próxima
oportunidade, o desejo já não esteja mais ali. E, quando o desejo se vai,
seguimos pela vida como por uma ferrovia sem desvios — olhando a paisagem
passar, contemplando de longe as oportunidades que deixamos escapar.
O encanto verdadeiro nasce da alma e
fala uma linguagem que a razão não alcança com facilidade. Tentar compreendê-lo
à luz do intelecto é tarefa ingrata. Mais sábio é permitir que o corpo se
lance, com entrega, nesse encantamento. Toda tentativa de controle, de contenção, de dar voz ao superego — esse
guardião das normas e moldes sociais — apenas nos afasta de viver com
inteireza.
Lembremo-nos: a alma pode ser eterna,
mas o corpo não. Ele envelhece, cansa, perde o vigor.
Já imaginou uma alma cheia de vontades
e sonhos, mas sem um corpo para realizá-los?
Talvez, então, seja melhor que a alma
se vá junto com o corpo — plenos de vida, até o fim.
Platão ensinava, através de Sócrates,
que morrer é libertar a alma das amarras do corpo. Mas eu prefiro ver minha
alma abraçando o corpo, com ternura — amando-o, mesmo com suas limitações — ao
invés de buscar essa liberdade idealizada.
Leitura Filosófica e
Poética de “Andar sobre as linhas
paralelas do trem”
Por Hiran de Melo – Comentado
No título, “andar sobre as linhas
paralelas do trem” já nos remete a uma metáfora potente: a vida rigidamente
estruturada, previsível, sem curvas, sem desvios. O trem, símbolo da trajetória
reta e imutável, ecoa o ideal de uma existência "certinha", sem
riscos, porém também sem surpresas — ou seja, sem liberdade. A crítica, ainda
que suave, é profunda: uma vida vivida estritamente segundo as regras pode
acabar atropelando o próprio sentido de estar vivo.
Na linha do pensador Deleuze poderíamos especular: as linhas
do trem são linhas de fuga encobertas por estrutura. A vida “certinha” implica
uma máquina que funciona — mas que não varia, nunca escapa. A crítica sutil,
mas potente, sugere a urgência de romper a repetição: mover-se não apenas
sobre, mas entre e para além das linhas.
O autor inicia com um gesto de
libertação:
"Já não me
prendo tanto aos 'erros'."
Aqui, o "erro" deixa de ser
um desvio a ser punido para se tornar uma experiência com valor em si. Há um
convite à autenticidade — errar conscientemente, como quem escolhe viver fora
do trilho quando sente que ali não há mais verdade. Isso é profundamente
existencialista: evoca a liberdade de escolha em Sartre, e até o impulso vital
de Bergson, onde a vida, em sua essência, escapa à lógica mecânica.
O trecho seguinte toca um ponto
sensível para qualquer buscador da verdade, como é o caso do maçom:
“Errar também
pode ser doce, desde que não fira o outro”.
Essa frase abriga uma ética do afeto e da responsabilidade. O erro não como culpa, mas como tentativa, desde que resguarde o respeito ao outro — um princípio de fraternidade, que une o pensamento ético ao coração. E ecoa o entrelaçamento de afeto e responsabilidade, como nos escritos de Deleuze sobre afeto como potência de conexão (e não como pegada de vontade sobre o outro). É uma ética amorosa, mas não carente — é uma ética que se expande sem ceifar o campo do outro.
O trilho e o desejo
A metáfora do beijo não dado é de uma
beleza pungente. O desejo reprimido é comparado à ferrovia que se percorre
olhando a paisagem, mas sem tocá-la. Trata-se de uma crítica à vida
contemplativa demais, desprovida de entrega. O autor alerta: o desejo é fugaz.
Perder o momento é, talvez, perder a oportunidade de ser inteiro.
"Quando o
desejo se vai, seguimos pela vida como por uma ferrovia sem desvios."
Aqui, o texto se enriquece com um tom
poético-existencial: o desejo é o motor da vivência autêntica. Em linguagem
jungiana, poderíamos dizer que o desejo é a voz da alma tentando emergir — e
quando ignorado, deixa apenas um rastro de melancolia.
O desejo aqui é o que nos impulsiona.
Em linhas da psicanálise deleuziano-guattariana, o desejo não se resume à falta
— é uma força produtiva, que cria conexões, gera mundos. Perdê-lo
significa adotar uma vida automática, sem essência.
A alma, o corpo e o
superego
Ao mencionar o superego, o autor invoca
Freud e a psicanálise. O superego, como instância normativa, representa a
sociedade dentro de nós. Controla, proíbe, vigia. Mas, para o poeta Hiran,
viver sob seu jugo constante é uma forma de mutilação do espírito. A
libertação, portanto, não é pela razão, mas pela escuta do encantamento — uma
entrega à alma, à intuição, ao que não se explica, mas se sente.
"Mais
sábio é permitir que o corpo se lance, com entrega, nesse encantamento."
Essa entrega é quase mística, e aqui o
texto flerta com o sagrado: o corpo não é obstáculo da alma, mas seu templo. Um
pensamento que dialoga mais com o estoicismo moderado ou com correntes orientais
(como o tantra), do que com o dualismo platônico.
Este instante sinaliza uma virada de
escuta: não seguir somente a voz interna de normas (o superego), mas
acolher o corpo como fonte de sabedoria e intensidade. Deleuze critica o
superego freudiano como um aparato de normatização, propondo uma escuta
molecular, uma entrega que pulsa vivência.
O corpo finito e a
alma eterna
Há uma reinterpretação corajosa do
ideal platônico. Enquanto Platão via o corpo como prisão da alma, o poeta Hiran
propõe outra visão:
"Prefiro
ver minha alma abraçando o corpo, com ternura — amando-o, mesmo com suas
limitações."
Essa visão é de uma sabedoria encarnada,
que compreende que o espírito precisa da matéria para realizar-se. Viver
plenamente é não desejar escapar da vida, mas honrá-la até o fim, com tudo que
ela oferece — inclusive os limites.
No fundo, esse texto é uma meditação
sobre o equilíbrio entre instinto e razão, alma e corpo, liberdade e
responsabilidade. É um convite a não viver no trilho do medo ou da convenção,
mas no caminho da escuta profunda da própria essência — o que, para a
maçonaria, se alinha ao processo de lapidação do ser, onde o homem se
aperfeiçoa pela vivência consciente e fraterna.
Em Deleuze, corpo e mente não são
opostos, mas dobras do real, intensidades em ressonância. Esta frase
celebra a vida na sua totalidade imanente, onde a alma não renega o corpo: ela
se dobra, se sintetiza, ela habita com deleite essa dança de intensidades.
Por enquanto
“Andar sobre as linhas paralelas do
trem” é uma ode à liberdade interior e à ousadia de viver com presença. Num
mundo que frequentemente nos empurra para o controle, o autor celebra o erro
consciente, o desejo vivido, a alma que ama o corpo e não o despreza.
Essa visão ressoa com o espírito
maçônico quando este se entende como um caminho de aperfeiçoamento humano, mas
também como um lugar de amor, de acolhimento dos limites, e da beleza que
reside justamente no imperfeito — desde que vivido com verdade e com respeito
ao outro.
O texto, ao refletir sobre equilíbrio
entre instinto e razão, liberdade e responsabilidade, converge com o processo
maçônico de lapidação: um modo de criar, junto a outros, uma comunidade de
cruzamentos intensivos, onde cada irmão é linha de fuga para sua própria
criação — e também para a criação coletiva.
Viver assim é escolha de liberdade, em
vez de rotina automática. É estar presente, ser intenso, honrar o corpo,
cultivar afetos, e caminhar junto de quem nos cerca — mas sempre com autonomia.
É uma vida que pulsa, não uma vida sobre trilhos.
No contexto maçônico, torna-se uma bela
antecipação de um caminho onde lapidamos a nós mesmos não para uniformizar, mas
para reinventar — cada um com seu ritmo, cada um em comunhão tônica. Uma
irmandade viva, feita de respeito, amor e autenticidade.
Mestre Melquisedec – Decano da ARLS
Fraternidade, Força e União, GOPB/COMAB.
Descrição da
Ilustração
A
imagem apresenta trilhos de trem
realistas que se estendem em direção ao horizonte sob um céu claro. No entanto,
o que começa como uma estrutura linear e rígida, gradualmente se transforma em múltiplas e fluidas linhas de cores vibrantes – azuis,
douradas, roxas e vermelhas – que se entrelaçam e se espalham de forma
orgânica.
Essa transição visual
simboliza a ruptura com o caminho
predeterminado e a exploração de rotas
inesperadas. Os trilhos representam a conformidade e a previsibilidade,
enquanto as linhas ondulantes e coloridas emergem como possibilidades de liberdade, criatividade e desvio do
convencional. A ilustração sugere que, mesmo dentro de estruturas
estabelecidas, há um potencial latente para a transformação e a descoberta
de novos horizontes, ecoando a ideia de "linhas de fuga" que
transcendem a rigidez e abraçam a fluidez da vida.
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