Do Descompasso à Compreensão: A Solidão Cantada e a Solidão
Simbólica
Por Mestre Melquisedec
"A
solidão é fera, a solidão devora..." — canta Alceu Valença com a voz do tempo, nomeando aquilo
que nos corrói em silêncio. Não é exagero dizer que sua canção ressoa como eco
antigo do que a filosofia, a arte e a espiritualidade sempre tentaram decifrar:
esse abismo manso e invisível onde o ser humano, por vezes, se reconhece e se
perde — a solidão.
No
ensaio “Um Espelho da Solidão Humana”, De Melo apresenta-nos uma imagem
inusitada e, para muitos, desconcertante: a figura do homem que trata uma
boneca hiper-realista como esposa. A chamada “esposa reborn”. À primeira
vista, um delírio. À segunda, um símbolo. À terceira — e mais importante — um grito
de angústia em busca de sentido.
Alceu já nos advertia:
"É amiga das horas,
prima-irmã do tempo"
A
solidão não se apresenta como simples ausência. Ela não chega, ela cresce. Ela
é presença dilatada, uma companhia devoradora que torna os relógios mais lentos
e os corações mais pesados.
De
Melo observa isso de outro ângulo — o do homem que, tocado por perdas, medos ou
desencantos, transfere seu afeto a algo que não oferece risco. A boneca não
rejeita. Não abandona. Não impõe. É a ilusão de uma presença constante. Uma
resposta ao amor líquido descrito por Bauman, onde os laços são frágeis,
descartáveis, breves.
E então se fecha o ciclo:
Se
Alceu descreve o descompasso, De Melo explica a tentativa de compensação.
Ambos
os interpretes da solidão convergem na mesma via simbólica. A canção chora a
perda do ritmo natural da vida. O ensaio analisa o impulso de recriá-lo com
artifícios. E entre o silêncio da música e a reflexão filosófica, somos
convidados a ver o que o poeta já via:
"A
solidão dos astros, a solidão da Lua,
a solidão da noite, a solidão da rua."
De
Melo olha para essa mesma solidão com olhos de quem percorreu os caminhos do
Templo. A boneca, para ele, não é escárnio. É símbolo. Assim como o compasso e
o esquadro apontam para verdades superiores, essa figura estranha pode apontar
para uma dor profunda — a dor de quem, vendado pela ausência, ainda tateia
em busca de luz.
O que nos cabe, então, diante
disso?
Alceu
Valença não responde com soluções. Apenas canta. Canta como quem compartilha o
fardo e nos diz: “Você não está só na sua solidão”. Já De Melo propõe uma
atitude: a tolerância ativa, a empatia verdadeira, o olhar fraterno.
Não
aquele que zomba do que é incomum, mas aquele que compreende que por trás de
cada gesto, por mais esquisito que pareça, pode haver um coração
descompassado implorando por sintonia.
Heidegger,
citado no ensaio, afirma que é na angústia que nos aproximamos da verdade do
ser. Talvez a boneca-esposa, como a música triste, seja uma forma de lidar com
o caos, de nomear o indizível, de arrumar o mundo interno. E nisso, arte e
filosofia se encontram.
Por
isso, como maçons — ou simplesmente como seres humanos conscientes — devemos
ser mais afinados com o tempo do outro, mesmo quando esse tempo se
apresente como estranho. Pois, como nos lembra o próprio texto:
“Nunca estivemos tão próximos na aparência e tão distantes na
essência”.
E
talvez seja isso o mais trágico de nossa era: vivermos conectados por fios
digitais e separados por muros emocionais.
Que
ouçamos, então, Alceu com os ouvidos do coração. Que leiamos De Melo com os
olhos da alma. E que, entre uma nota e um símbolo, saibamos reconhecer no outro
não o estranho, mas o espelho.
Pois
todo ser humano, em algum momento, é um astro solitário, uma rua vazia,
uma Lua sem verso.
E
ainda assim — ou justamente por isso — merece ser compreendido.
Referências:
De
Melo
https://aberturaaodialogo.blogspot.com/2025/05/um-espelho-da-solidao-humana-por-hiran.html
Valença
https://www.letras.mus.br/alceu-valenca/44016/
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