Do corpo

 

Por Manoel Cassiano de Amorim Pereira

 

Do corpo outrora vigoroso

Dos meus ossos ressequidos

Traz a dor do sofrimento

 

Em vê o meu solo nordestino

Seco quase morrendo

E no meu derradeiro momento

 

Por amor a minha terra

Nos meus olhos brotam últimas lágrimas

Que ao cair molha a terra resseca

Com amor me faço doar

Para que renasça a vida no solo do meu Nordeste.

 

Reflexão – Uma leitura possível do poema:

 

Do corpo

 

Sob a perspectiva da ecocrítica, o poema "Do corpo", de Manoel Cassiano de Amorim Pereira, estabelece uma provocante relação entre o indivíduo e o meio ambiente. O autor entrelaça a dor pessoal com a angústia da seca nordestina, criando uma profunda identificação entre o poeta e sua terra natal. Por meio de uma linguagem poética rica em metáforas e imagens vívidas, o autor constrói um universo simbólico que dialoga com a tradição poética nordestina. A imagem do corpo envelhecido como metáfora da terra seca, por exemplo, revela uma consciência ecológica antecipada, que encontra eco nos debates contemporâneos sobre a crise ambiental.

 

1.  A Consciência do Envelhecimento e da Dor

 

"Do corpo outrora vigoroso / Dos meus ossos ressequidos"

 

Ao contrapor o "corpo outrora vigoroso" aos "ossos ressequidos", o poeta estabelece uma metáfora que permeia todo o poema. O corpo envelhecido, assim como a terra seca, é um símbolo da passagem do tempo, da finitude e da dor. Essa imagem central conecta o sofrimento individual à angústia coletiva, revelando uma forte identificação do poeta com sua terra.

 

"Traz a dor do sofrimento"

 

A expressão "traz a dor do sofrimento" é um verso impactante que sintetiza a angústia do poeta. A dor física se transmuta em sofrimento existencial, espelhando a dor da terra sedenta. Ao interiorizar essa dor, o eu lírico se torna um porta-voz daquela terra sofrida.

 

2.  O Olhar para a Terra Sofrida

 

"Em vê o meu solo nordestino / Seco quase morrendo"

 

A relação entre o poeta e sua terra natal é central nessa estrofe. Ao direcionar seu olhar para o "solo nordestino", seco e quase moribundo, o poeta revela uma profunda identificação com o sofrimento de sua pátria nordestina. A personificação da terra intensifica essa conexão, transformando-a em uma entidade viva que sofre e anseia.

 

"E no meu derradeiro momento"

 

A frase "E no meu derradeiro momento" concentra em si a essência da relação entre o poeta e sua terra. A consciência da finitude da vida intensifica o amor pela terra, transformando a morte em um ato de entrega final. A terra, nesse sentido, se torna a razão de ser do poeta.

 

3.  A Doação e a Esperança

 

"Por amor a minha terra / Nos meus olhos brotam últimas lágrimas"

 

A imagem das "últimas lágrimas" brotando dos olhos do poeta é uma metáfora poderosa. As lágrimas, símbolo da dor e da esperança, transformam-se em chuva, revitalizando a terra seca. Essa doação poética e simbólica revela o profundo amor do poeta por sua terra natal.

 

"Que ao cair molha a terra resseca / Com amor me faço doar"

 

A repetição do termo "amor" na terceira estrofe não é apenas um recurso estilístico, mas um elemento fundamental para a compreensão do poema. A insistência na palavra "amor" intensifica a emoção e revela a profundidade do sentimento que liga o poeta à sua terra. A doação, nesse contexto, é um ato de amor incondicional e sacrificial.

 

"Para que renasça a vida no solo do meu Nordeste"

 

A relação entre o indivíduo e a natureza, estabelecida ao longo do poema, culmina nessa última estrofe. O desejo de renascimento da vida na terra revela a profunda conexão do poeta com o meio ambiente. A morte, nesse contexto, é vista como uma volta à natureza, uma integração ao ciclo da vida.

 

Leituras...

 

O corpo do poeta, envelhecido e doente, serve como metáfora para a terra nordestina, ressecada como um leito de rio em estiagem. Essa equiparação revela uma complexidade simbólica que transcende a mera descrição da idade e da aridez. A imagem evoca a noção de exaustão e morte, conectando-se ao mito da terra-mãe, figura central em diversas culturas.

 

A dor física do poeta se espelha na dor da terra, criando uma identificação profunda entre o sujeito poético e seu lugar de origem. Essa identificação, marcada pela dor e pela aridez, nos leva a questionar até que ponto a natureza e o homem são inseparáveis, e como a experiência individual se entrelaça com as dores coletivas de um povo.

 

A antítese entre 'vigoroso' e 'ressequidos' enfatiza a radical transformação tanto do corpo do poeta quanto da terra, estabelecendo um paralelo entre a vida e a morte, a plenitude e o vazio.

 

“Nos meus olhos brotam últimas lágrimas / Que ao cair molha a terra resseca” são versos que revelam a profunda dor do eu lírico diante da aridez do mundo. As lágrimas, nesse contexto, adquirem um valor simbólico profundo, representando tanto a esperança de renovação quanto o reconhecimento da finitude.

 

A imagem evoca a figura bíblica de Cristo, que derrama seu sangue para a salvação da humanidade, e reforça a dimensão sacrificial da entrega do eu lírico. No entanto, as lágrimas também podem ser interpretadas como uma expressão da impotência do poeta diante da força avassaladora da natureza e da passagem do tempo.

 

A dimensão emocional do poema é marcada por uma profunda empatia, que se manifesta através de sentimentos como tristeza, saudade, angústia e, paradoxalmente, amor e entrega. A visão da terra sofrendo provoca no eu lírico uma intensa dor, que se revela em imagens vívidas e em um tom melancólico. A entrega do corpo à terra, por sua vez, representa um ato de amor incondicional e uma tentativa de transcender a dor individual.

 

A crise hídrica retratada no poema não é um fenômeno natural isolado, mas sim o resultado de um conjunto de fatores históricos, sociais e políticos complexos. A seca crônica que assola o Nordeste é fruto de um modelo de desenvolvimento excludente e predatório, que privilegia os interesses de poucos em detrimento das necessidades da maioria. O poema denuncia essa realidade, revelando as profundas desigualdades sociais e ambientais que marcam a região.

 

O poeta, em seu momento final, realiza um ato de doação, oferecendo suas últimas lágrimas para revitalizar a terra. Esse gesto simboliza o amor incondicional à terra natal e a esperança no renascimento. A doação das lágrimas, um líquido vital, para a terra seca, evoca uma dimensão espiritual, sugerindo uma conexão profunda entre o homem e a natureza.

 

Por fim

 

Em 'Do corpo', o poeta Manoel Cassiano de Amorim Pereira estabelece uma profunda conexão entre o corpo individual e a terra nordestina, transformando essa relação em um hino à natureza e ao povo. Através de uma linguagem simples e direta, ele expressa um amor visceral pela terra, marcado pela admiração pela força da natureza e pela identificação com as tradições e a cultura do Nordeste.

 

As metáforas que comparam o corpo do poeta à terra seca e as lágrimas do poeta à chuva que fertiliza o solo revelam uma visão poética que transcende o individual, conectando a experiência pessoal com a coletiva. O poema, assim, convida o leitor a refletir sobre a importância da terra como fonte de vida e sobre a fragilidade do homem diante das forças da natureza.

 

Poeta Hiran de Melo 

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