Dois de Julho: a memória que caminha entre o povo

Por Hiran de Melo

Há datas que não se limitam a marcar o tempo — elas o habitam. O Dois de Julho, na Bahia, não repousa como lembrança encerrada nas páginas da história: é chama viva na consciência coletiva de um povo que, em lugar de aguardar por heróis distantes, tomou para si a tarefa de escrever seu próprio destino, com mãos calejadas, passos decididos e corações despertos. As ruas tornaram-se palco, e os corpos, instrumentos de transformação.

 

Esta não é, pois, uma extensão tardia do 7 de Setembro, mas sim um gesto autêntico de afirmação popular. Se a proclamação do Império foi um ato político de cima, a libertação da Bahia, em 1823, foi uma conquista forjada pelo povo, no calor do Recôncavo, onde os muros da dominação ruíram não pelo poder do decreto, mas pela força da persistência. Cada avanço rumo à liberdade foi conduzido por mãos e vozes muitas vezes excluídas das narrativas oficiais — mulheres como Maria Felipa, camponeses, soldados anônimos, negros livres e escravizados, indígenas e tantos outros filhos da terra. Aqueles que sempre estiveram presentes, mesmo quando a história não os reconheceu.

 

É nesse ponto que a lição da filósofa, ao afirmar que o político nasce da pluralidade e da ação coletiva, encontra eco. E é com escuta atenta e espírito interpretativo, como propõe a hermenêutica, que esse passado continua a nos falar — não como algo distante, mas como exercício presente de compreender-se parte de uma comunidade que resiste e se afirma.

 

A Bahia não esquece. Ela revive. Todos os anos, em julho, as ruas de Salvador tornam-se manuscritos vivos. O cortejo que parte da Lapinha segue não apenas um itinerário urbano, mas uma geografia afetiva da memória. A imagem da Cabocla, conduzida entre cânticos e aclamações, não é mero símbolo: representa a força mestiça, plural, que moveu o impossível. E ao redor dela, cada fanfarra, cada estudante uniformizado, cada ancião que empunha seu estandarte, proclama silenciosamente: somos mais do que fomos, porque escolhemos lembrar.

 

Assim, o Dois de Julho não é um espelho voltado apenas para o passado — é um farol para o presente. Quando o presidente da República percorre essas ladeiras e propõe que a data seja reconhecida nacionalmente, mesmo sem transformá-la em feriado, convida-nos a olhar de novo, com mais atenção e reverência. Reconhecer, neste caso, é um gesto de lucidez: é admitir que o que se viveu na Bahia foi essencial para que o Brasil se tornasse, enfim, independente.

 

Ver com clareza é compreender que a independência brasileira não se esgotou num só ato, tampouco numa única figura. Foi uma travessia longa, marcada por lutas, esquecimentos e silenciamentos que hoje clamam por reparação. O Brasil, em sua plenitude, começa a se constituir de fato quando reconhece os ecos que vêm da Bahia — não apenas os estampidos dos canhões, mas os cânticos, os corpos, os nomes. Maria Quitéria, Joana Angélica, Maria Felipa — não estátuas distantes, mas presenças humanas, vulneráveis, heroicas.

 

Nas escolas, essa história já pulsa como semente de formação. Nos livros, nos monumentos, nas melodias populares, o Dois de Julho ressurge como ponto de partida — jamais como ponto final. Porque a liberdade, como bem sabem aqueles que a conquistaram por esforço e sacrifício, não é conquista definitiva: é construção constante, é lição a ser cuidada, ensinada, celebrada e transmitida.

 

Neste ano de 2025, quando os sinos dobrarem novamente nas ladeiras de Salvador e a cidade se vestir de vermelho, branco e azul, não será apenas um rito. Será um gesto de fidelidade à verdade histórica e de amor ao bem comum. Porque um povo que caminha alimentando sua memória é um povo que não se curva ao esquecimento.

 

E se a independência do Brasil foi proclamada por um homem sobre um cavalo, a da Bahia foi erguida por um povo de pé — unido, digno e consciente de seu papel na construção de um país verdadeiramente livre.

 

Que essa lembrança, entre nós, Irmãos, permaneça viva — como luz acesa no altar da liberdade, sustentada pela fraternidade, pela verdade e pelo eterno compromisso com a justiça.

 

Hiran de Melo – decano da ARLS Fraternidade, Força e União - GOPB

 

SAIBA MAIS: https://tvtnews.com.br/2-de-julho-e-as-heroinas-maria-felipa-maria-quiteria-e-joana-angelica/


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